Por Richard Simonetti
Mário Vicente era vidrado na idéia das famílias espirituais, que se sobrepõem às precárias ligações sangüíneas.
– Pois é – dizia, entusiasmado, a um confrade espírita –, os Espíritos tendem a formar grupos afins nos caminhos da vida.
– Reencarnam juntos?
– Sim, sempre que possível, compondo lares ajustados e harmônicos, “um por todos, todos por um”.
– Você vive com sua família espiritual?
Mário Vicente esboçou um sorriso triste.
– Quem me dera! Lá em casa nosso relacionamento funciona mais na base de “cada um por si e Deus por todos”. Estamos longe de um entendimento razoável. É muita discussão, muita briga… Somos velhos adversários amarrados pelo sangue, a fim de nos reconciliarmos.
– Recebeu alguma revelação?
– Não… nem seria preciso! Basta observar nossos conflitos.
– A barra é pesada?
– Bem… não é tanto assim. Gosto muito de minha mulher. Até pensei, durante os primeiros tempos, fosse uma alma gêmea. Ela é dedicada ao lar, mãe prestimosa. Ocorre que é um tanto voluntariosa e, não raro, agressiva. Faz tempestade em copo d’água. Considero a Ernestina meu teste de paciência. Nossos “santos” estranham-se freqüentemente.
– E os filhos?
– Adoro todos eles, mas são Espíritos imaturos que me dão trabalho e, não raro, desgostos. Pedro, o mais velho, envolveu-se com drogas! Júnior, o do meio, “aborrescente” típico, vive a me questionar; Jussara é delicada e sensível mas puxou o gênio da mãe. Se contrariada, sai de perto! Um horror!
– São seus credores. Cobram prejuízos que você lhes causou em vidas anteriores…
– Certamente! Estou consciente desse compromisso. Tento o fazer o melhor, sustentando a estabilidade do lar. No entanto, não é fácil. Às vezes perco o controle. Envergonho-me das brigas em que me envolvo… Convenhamos, porém, que ninguém é de ferro!…
Mário Vicente suspirou, emocionado:
– Sinto falta de um relacionamento familiar sustentado por legítima afinidade. Todos olhando na mesma direção, empenhados em cultivar a paz, o trabalho do bem, a amizade, a compreensão… Seria o paraíso! Vejo-me como um retardatário, preso a compromissos decorrentes de besteiras que andei cometendo, purgando meus débitos. Certamente aprontei muito!
– Espera alcançar a família espiritual?
– Claro! Quero cumprir minhas obrigações, fazendo o melhor… Hei de merecer um retorno ao convívio de meus queridos, em estágios mais altos… Tenho convicção de que uma companheira muito amada espera por meu sucesso nas provações humanas, favorecendo abençoado reencontro.
***
Animado por seus sonhos, Mário Vicente esforçava-se por superar as dificuldades de relacionamento junto à esposa e filhos. Tolerava suas impertinências. Fazia de tudo para ajudá-los. Exercitava carinho e compreensão.
O cumprimento de seus deveres junto à família humana haveria de lhe proporcionar o sonhado reencontro com a família espiritual.
Passaram-se os anos.
Os filhos casaram, vieram netos, ampliou-se o grupo familiar, sucederam-se compromissos e problemas…
Nosso herói até que conseguiu sair-se relativamente bem, acumulando méritos.
Aos setenta e dois anos, retornou à Pátria Espiritual.
Espírita esclarecido, não teve dificuldade para reconhecer-se livre do escafandro de carne, amparado por generosos benfeitores.
Após os primeiros tempos, já adaptado à nova situação, procurou dedicado orientador da instituição socorrista que o abrigara.
Foi logo pedindo, inspirado pelo ideal que acalentava:
– Estimaria, se possível, receber notícias de minha família espiritual…
– Seus familiares estão bem, nas lutas de sempre, sofrendo e aprendendo, como todos os homens.
– Estão reencarnados? Pensei que os encontraria aqui!
– Você conviveu com eles… Não sabe que continuam na Terra?
– Não me refiro à família humana. Anseio abraçar os entes queridos de priscas eras, sobretudo a amada companheira perdida nas brumas do passado…
O mentor sorriu:
– Falou bonito, mas está equivocado, meu amigo. Sua família espiritual é aquela que lhe marcou a experiência na carne. Sua esposa é uma alma de eleição. Os filhos são antigos companheiros de jornada evolutiva. Desde remoto passado vocês vivem experiências em comum.
– Mas e os nossos problemas de relacionamento?
– Haveriam de experimentá-los mesmo que se transferissem para a esfera do Cristo. Como ensinava o Mestre, ainda há muita dureza no coração humano.
– Que devo fazer?
– Você julga-se um retardatário. Na verdade, não obstante suas limitações, está um pouco à frente do grupo familiar, ainda lento na aquisição de valores espirituais. Tem, portanto, o dever de ajudar. Foi essa a sua tarefa na última existência. Será esse o seu compromisso agora, exercitando a função de protetor espiritual junto aos seus.
E Mário Vicente, que tanto ansiara por sua família espiritual, constatou que estivera com ela durante décadas, sem se dar conta disso.
Muita água rolaria no rio do tempo, até que todos ganhassem asas, habilitando-se à convivência perfeita.
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